Bibiano Garcia é filósofo, professor da rede pública municipal. Ex vereador de Manaus e ex secretário executivo adjunto de educação. É Missionário Leigo Redentorista. Ministro extraordinário da Palavra e da Sagrada Eucaristia.

Ele não nasceu em uma família rica ou em um país desenvolvido, nem frequentou escolas de alto padrão. Sendo hoje, João estaria na lista que aponta que uma em cada seis crianças, ou 356 milhões em todo o mundo, vivia na pobreza extrema antes da pandemia de Covid-19. Só no Brasil são 4,8 milhões de crianças vivendo na extrema pobreza. Esse número deve subir significativamente, de acordo com uma nova análise do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef.

Conheci o João no início dos anos 2000. Eu lecionava na escola municipal Sônia Maria. Lá conheci muitos colegas professores solícitos e dedicados, muitos dos quais guardo o respeito e a amizade até os dias de hoje. Lecionávamos para alunos do 6º ano, a maioria entre 11 e 12 anos de idade. Dentre os vários, havia um aluno que conseguia tirar-me do sério. Irei chama-lo de João. Quase sempre não fazia os exercícios, tarefas de casa ou trabalhos. Já estávamos finalizando o terceiro bimestre. Incrivelmente ainda guardo a imagem de seu rosto sofrido e de seu pequeno corpo magro. Sua blusa branca quase sempre encardida, quando não esquecia o lápis esquecia o caderno cheio de páginas arrancadas.

Apesar de displicente e valente com seus colegas, sempre acompanhava com atenção as aulas de Ensino Religioso. Certo dia, ao aplicar uma avaliação, João resolveu deitar a cabeça sobre as atividades e tirar um sono. Não iria, mais uma vez, responder as questões. Subitamente, e hoje me entristeço pela atitude, com voz acima do tom, segurei-o pelo braço e o coloquei para fora de sala. Disse ainda que só iria participar novamente das aulas se trouxesse seus pais. Que bastava de tanta preguiça e desleixo com os estudos. Encostei a porta e retornei para acompanhar o restante da turma.

Ao final da avaliação todos já se dirigiam para o recreio. Na entrada da porta estava meu pequeno aluno, sentado no chão, encostado na parede. Dirigindo-me a ele reafirmei minha decisão de que só retornaria as aulas na presença de seus pais!

Nessa hora, João decide dirigir-me, pela primeira vez, a palavra:

– “Professor, me deixe fazer as atividades. Eu não moro com meus pais. Moro com uma tia. E ela falou que se eu desse problema de novo ela me expulsaria de casa. Eu não conheço meu pai e nem minha mãe.”

Naquele dia eu não retornei para o quarto tempo, pedi que João falasse o que estava acontecendo. O que ele me contou me fez pedir-lhe perdão. Perdão por não saber que aquela criança havia sido abandonada pelos pais logo que nascera e foi deixada a porta de uma casa pobre dentro de uma caixa de papelão. Perdão por saber que quase sempre, todos os dias, o que ele conseguia comer, era a merenda da escola que lhe era dado. Perdão por saber que após as aulas matutinas João precisava sair de casa para catar latinhas jogadas no chão e já pela final da tarde retornar com algum dinheirinho que possibilitasse a compra de uma farinha, alguns ovos ou lata de sardinha. Caso chegasse de mãos vazias, era uma surra que levava por passar o dia “vagabundando”. Perdão por saber que aquela criança violenta, as vezes, quase não tinha tempo de brincar…

Nas várias vezes que tentei falar com sua tia, encontrei apenas uma casa de madeira medindo 4m x 4m e uma garotinha aparentando uns 12 ou 13 anos, cuidando de mais duas crianças menores. A tia, segundo a menina, sempre estava atrás de trabalho.

Aquele pequeno menino me deu uma lição da qual eu jamais esquecerei. Que cada aluno é único e especial, não importa sua condição social. Que eu não tenho o direito de julga-los e condena-los, e mesmo não sendo minha obrigação como professor e nem tendo as ferramentas de um governo de Município ou de Estado, eu não posso abandonar uma alma sofrida sem lhe dar ao menos um pouco de minha atenção, carinho e amizade.

Ainda naquele ano, recebi um convite para trabalhar nas Aldeias Infantis S.O.S Brasil. Deveria deixar tudo para cuidar de uma comunidade juvenil formada por adolescentes de 14 a 17 anos. Havia ainda as casas lares onde viviam cerca de 120 crianças com suas respectivas mães sociais. Eram crianças advindas de lugares destruídos pelas drogas, violência, abusos, negligencias, dentro ou fora de seus lares.

Ao conhecer o trabalho das Aldeias S.O.S, no final daquele ano, resolvi deixar a sala de aula e passei a me dedicar a estes pequenos renegados, durante bom tempo de minha vida. Um dia escreverei sobre isso.

No ano seguinte retornei para visitar o João. A casa estava bonita, pintada, paredes novas e até ampliada. Mas João não estava mais lá. A família era outra. E eu nunca mais tive notícias suas. Queria muito que ele conhecesse outros amigos, com histórias parecidas com a sua. Quem sabe até, conhecer um novo lar. O lar das Aldeias Infantis.

Não julguemos uma criança ou um adolescente pelo seu tipo de comportamento agressivo ou apático sem antes dar-nos ao trabalho de conhece-los melhor. Muitos destes foram violentamente abusados, violentados e até torturados por aqueles que deviam protegê-los! Pais, sociedade, governos.

Acredito piamente que se João, assim como as demais crianças em situação de pobreza extrema, tivesse crescido em outras condições, no seio de uma família acolhedora e estruturada, ou em um país justo e com justa distribuição de riqueza, teria alcançado situação infinitamente melhor a que conhecemos. João não teve a mesma sorte do filho do ex-presidente interino Michel Temer, Michel Filho, mais conhecido como Michelzinho, que teve em seu nome, aos 7 anos, mais de R$ 2 milhões em bens.

Seria possível afirmar que Michelzinho, que frequenta as melhores escolas da capital paulista — cuja mensalidade pode passar de R$ 3 mil, quase três vezes a renda média per capita do país —, terá as mesmas chances de ser bem-sucedido que um dos alunos de escolas públicas municipais ou estaduais?

Ao querido João, meu grande abraço. Espero que estejas bem com saúde, felicidades e paz.

Participação.

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